quarta-feira, 2 de outubro de 2024

"Brasil, condenado à esperança".

 



A depender de meu estado de espírito, posso ser mais conservador em matéria de linguagem, não obstante meus sólidos conhecimentos em sociolinguística. Às vezes, posso demonstrar aborrecimento com o hábito comum de cancelamento do pronome “se” nas construções pronominais como “referir-se”, “machucar-se”, classificar-se”. Por exemplo, “fulano machucou” em vez de “fulano se machucou”; “ O Brasil classificou para a Copa do Mundo”, em vez de “o Brasil se classificou para a Copa do Mundo”. Mas, basta alguém dizer que aquelas construções sem o “se” são erradas, para eu acordar o sociolinguista em mim e desatar a fazer reprimendas contra esse hábito incivilizado, antipático e teoricamente inconsistente de reduzir a complexidade do fenômeno social da linguagem a tais valorações normativas. Mutatis mutandis, a depender de meu estado de humor, posso ficar bastante indisposto para com as alegações das religiões instituídas e  com seus fiéis que as reduzem comumente à busca de um Deus pessoal, mas basta que alguém diga que religiões não passam de suspertições, para eu tomar partido em defesa da religião como um acontecimento histórico mais complexo, que, não se reduzindo ao problema da existência de Deus ou de deuses, diz respeito ao retorno do homem para si mesmo na busca do infinito, do incognoscível, do insondável. A religião é a procura de rastros de sentido no infinito. Kierkegaard chamava Deus esse nosso distanciamento máximo do mundo do aqui e agora, da imediatidade das coisas existentes. Na busca religiosa de um Deus, espera-se encontrar um sentido último (metafísico) que possa ser compreendido. Esta é uma experiência que me é estranha, até certo ponto incompreensível, muito embora legitimamente humana. Porque essa experiência de encontro com o que nos transcende é, num sentido primário, o encontro com o espírito humano. Espírito significa autorrelação, a relação que o eu mantém consigo. Na busca de Deus, o homem busca interrogar-se sobre suas origens, sobre quem ele é, sobre por que existe, sobre o sentido último da vida e do Universo. Assim, posso compreender que as religiões aspiram a realizar este anseio humano de “religare”, de religação com a origem de um sentido cuja busca o animal humano está condenado a fazer. Mas essa origem continua, para mim, sendo um mistério que o Deus dos monoteísmos não consegue solucionar. Posso, pois, dizer de mim o que disse Max Weber acerca de si mesmo: “não tenho nenhuma afinidade musical com a religião” mas “não sou antirreligioso”. Mas não me venham com notícias de um “Além” incognoscível, não me venham querer fazer-me crer que vocês sabem o que há por trás das cortinas (se é que existam tais cortinas), não me venham dizer que acharam aquilo que, há milênios, a humanidade busca. O animal humano se encontra nessa busca e se define por essa busca de si mesmo. E cada tentativa de interromper essa busca por meio de respostas simples e absurdas é uma forma de superstição e de autoengano.

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